Era 2007 quando conheci a facilitação com tarjetas e post-its. Ver aquele tipo de workshop sendo conduzido de forma tão dinâmica e interativa era fascinante. Ficava deslumbrado vendo a facilitadora como maestra daquelas pessoas todas trabalhando ao mesmo tempo entre caos e ordem, colocando suas ideias em post-its, compartilhando num mural, agrupando-as, planejando e “cocriando” junto.
Hoje me pergunto qual era a qualidade desse lugar que alcançávamos, que apesar dos elogios daqueles participantes, repenso o quanto esse tipo de atividade pode nos aproximar ou afastar de nossas reais intenções e até do que se desdobra após esse tipo de encontro.
Mais ou menos na mesma época havia me juntado à Escola de Diálogo de São Paulo, jovem professor e aprendiz de facilitador. Em um aconchegante espaço na Vila Madalena reuníamos 15 a 20 pessoas às terças à noite para A Experiência do Diálogo, um programa de seis meses sobre diálogo e pensamento complexo. Sentávamo-nos em roda numa sala onde uns se revezavam entre duas grandes poltronas, um sofá, algumas cadeiras de plástico e almofadões no chão de carpete. Ao chegarem, alguns corriam para as poltronas, outros para sentar do lado do café e dos lanches caprichosamente preparados por Lamara, a especialista em complexidade. Por vezes havia uma projeção de slides, mas só para contextualizar alguma coisa e começar uma conversa. Afinal esse era o mote, experienciar o Diálogo. Numa das primeiras aulas, Arnaldo, facilitador que inaugurava o curso, projetava na parede uma citação que atribuía aos povos originários ameríndios “sentamos em roda e falamos, falamos e falamos até que comece a Fala”. Esta Fala com maiúsculo sintetizava a proposta, deixar que o campo do diálogo nos atravessasse.
Uma das práticas consistia em prestar atenção a como as conversas aconteciam, numa espécie de meta-observação, o que nos permitia perceber a qualidade de cada interação. Por vezes acontecia algo mágico. Era como se, depois de aquecidos, as ideias aparecessem de um lugar diferente e cada um se complementasse como numa orquestra ou algum tipo de frescobol em grupo. Era uma experiência que nos passava, nos acontecia e nos atravessava, parafraseando Larrosa Bondía [1]. Uma espécie de comunhão, que, ao mesmo tempo em que preservava a individualidade de cada um, havia um campo que dava voz a algo que nenhum de nós poderia ter pensado sozinhos, muito menos de antemão. Emergia um entendimento novo, dava para sentir o frescor daquelas ideias. O pensamento estava vivo.
Por vezes nós também usávamos os tais post-its. Cobríamos a parede toda com um rolo de papel e pedíamos para as pessoas colarem ali suas ideias, seus aprendizados, seus sentimentos a depender da atividade. Ocasionalmente agrupávamos e relíamos aqueles quadradinhos, tentando capturar o que fora trabalhado. Era divertido e visualmente excitante ver aquela parede colorida. Mas era diferente daquelas rodas de diálogo.
Como um administrador, eu sentia uma satisfação em ver aqueles papéis agrupados, e todo aquele “conhecimento” e “ideias” organizadas. Podíamos gerenciar aquilo! E naquela época, acostumado com ambientes mais "quadrados", trabalhar com os post-its era muito mais sedutor, hoje diríamos que era hype. Estávamos “co-criando”, pensava eu orgulhoso.
Uma vez tentamos fazer o planejamento da Escola de Diálogo com um grupo de ex-alunos e parceiros. Usamos os post-its para cada “caixinha” – visão de futuro, intenções, objetivos, atividades, responsáveis, etc. Foi produtivo e eficiente. Mas Arnaldo, o experiente Gestalt terapeuta, tinha um jeito de enxergar grupos e processos diferente do meu e ao fim da tarde enquanto arrumávamos a sala ele me disse algo que levaram alguns anos a me aproximar do que ele estava tentando me dizer.
Não lembro as palavras exatas, mas hoje traduziria da seguinte forma. Era como se o tipo de construção feito naquele ambiente não tivesse uma coerência entre o “dentro e fora” das pessoas. Como se elas comprassem aquele planejamento de post-its sem um compartilhar de significado real, como atribuíamos ao termo “diálogo”. E, de fato, não havia naquela sessão a vivacidade das terças-feiras sentados em roda.
A palavra diálogo tem raiz etimológica em “día” e “lógos”, do Grego. “Día” é a mesma raiz de diâmetro, diapasão e diafragma; o diâmetro é a linha que atravessa o círculo por inteiro, portanto “día” é aquilo que atravessa. E “lógos” é traduzido como sentido, significado. Diálogo é quando um significado atravessa um grupo de pessoas. “Detesto cachorros!” – era o exemplo que Arnaldo sempre dava. E depois de questionarmos o por que, ele respondia “tá vendo esta cicatriz aqui? Quando eu tinha 6 anos um doberman se soltou e me mordeu". O significado atravessou, certo?.
Quando somos capazes de compartilhar significado, criamos um campo de coerência entre nós. Coerência, do latim Co-haerere, significa isso - existir juntos.
Esse campo, para mim, toca por vezes em algo sagrado, em que o silêncio e a fala generativas se alternam. Acessamos uma sabedoria coletiva e o nascimento de algo novo, que se faz em nós e através de nós.
As ideias que emergem dali, esta Fala, ao qual se referiam os ameríndios, expressam algo do domínio do invisível, aquilo que antecede o mundo material e das formas. Talvez seja justamente a força formativa que antecede a matéria e lhe presta sua forma. Acredito que seja aí onde resida o ofício do facilitador, e o que Allan Kaplan chama de "artista do invisível" [2].
Allan dizia que as ideias não surgem do vácuo. Nascem a partir de um contexto. E são vivas, têm vitalidade. Quando tiramos essas ideias de seu contexto e passamos a manipulá-las como meros objetos, perdem sua vitalidade e se tornam jargões. Sustentabilidade, cidadania, direitos humanos... Qual é o significado que esses termos carregam hoje?
O mesmo acontece num encontro, por exemplo, em que um grupo se divide em trios ou quartetos para discutir alguma coisa, aos poucos acendem ali uma chama e as ideias começam a ganhar energia. Mas quando retornamos a uma plenária e pedimos para cada grupo contar como foram suas conversas, de repente nos vemos reportando uma lista de itens, e todo aquele calor se esvai.
As ideias, como tudo que é vivo, não nascem prontas, nascem para se transformar. E se transformam para se tornar cada vez mais elas mesmas, metamorfoseando-se. Nosso equívoco talvez esteja em tentar capturar esses pensamentos como objetos inertes que podemos manipular. E, ao fazê-lo, corremos o risco de frear seu desenvolvimento prematuramente.
Às vezes um pensamento nasce e se desenvolve inclusive ao ponto de se tornar o contrário do que propunha inicialmente. Talvez você já tenha tido a experiência de achar algo correto num momento de vida, e noutro achar que estava errado, para depois mudar novamente de opinião, e descobrir que todas três versões estavam igualmente apropriadas. Experienciamos a própria natureza polar e paradoxal do pensamento vivo.
E se pudéssemos ser capazes de sustentar a integridade do pensar como processo, em constante vir-a-ser, e permitir que evolua em nós, incluindo suas contradições? O pensamento bem nutrido infunde a matéria, e pode se tornar novo conceito, novas práticas ou iniciativas. Como seria, então, nutrir espaços de cocriação que respeitem o tempo do seu desenvolvimento?
Essas perguntas são especialmente desafiadoras quando nosso modus operandi é cartesiano, mecanicista e gerencial. Nossa herança newtoniana enxerga o mundo como máquina e acabamos por privilegiar a eficiência, a previsibilidade, a uniformização e o controle.
Necessitamos cultivar capacidades para enxergar e atuar sob uma lógica do vivo. Mesmo quando desafiam o status quo, pois não serão como uma linha reta que vai do ponto A ao B no menor tempo e custo. Talvez sejam algo mais próximas a uma espiral. Ainda bebendo da sabedoria indígena, contaram-me que os povos originários amazônicos quando querem chegar num ponto desconhecido na floresta dizem “o branco vai em linha reta, e se ele está destruindo uma mata e secando um rio no caminho, pouco importa. Nós vamos em espiral, circundando e ganhando intimidade com o território até chegar”.
[1] “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça.” em Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Jorge Larossa Bondía.
[2] Artistas do Invisível – o processo social e o profissional de desenvolvimento. Allan Kaplan. Ed. Peirópolis, Instituto Fonte, 2005
Autor: Cesar Matsumoto é facilitador. Atua a serviço da vida, do desenvolvimento social e sustentável. Escreve de Florianópolis-SC, sua nova morada pós pandemia. Foi professor da Escola de Diálogo de São Paulo, criador do curso A Essência da Facilitação, e convidado em escolas de inovação e liderança. Foi sócio do Grupo Tellus onde idealizou a metodologia de inovação em governo e design centrado no cidadão. Administrador público pela FGV-EAESP, cursando pós-graduação em Delicado Ativismo-Prática Social Reflexiva (Proteus Iniative, África do Sul) e formações diversas em facilitação e Goetheanismo.
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